O feminicídio começa muito antes do fato consumado



Atenção aos sinais, porque sempre, há sinais 




O feminicídio não acontece de forma repentina, ele é um processo, um caminho pavimentado por pequenos atos de violência cotidiana que, por serem repetidos e socialmente relativizados, passam a ser tratados como normais, especialmente dentro da vida a dois.

Ele começa quando a força aparece disfarçada de afeto: naquela segurada mais firme no braço, no tom de voz que intimida, no gesto que causa medo mas é justificado como “impulso”, “ciúme” ou “momento de raiva”. Muitas vezes, essa violência ainda é relativizada por uma frase recorrente e perigosa: “ele só faz isso quando bebe”.

O álcool não cria o agressor. Ele não transforma alguém violento em outra pessoa. O álcool apenas reduz inibições e amplia comportamentos que já existem. Usar a bebida como explicação é uma forma de retirar a responsabilidade de quem agride e transferi-la para uma circunstância externa, como se a violência fosse um desvio ocasional, quando, na realidade, ela é padrão, escolha e exercício de poder.

Essa relativização costuma caminhar junto com outra dinâmica igualmente reveladora: a manutenção das redes sociais masculinas e o esvaziamento das redes femininas. Enquanto ELE continua com seus amigos do trabalho, da infância, do futebol, da cervejinha do fim de semana, ELA vai, pouco a pouco, sendo afastada das próprias amizades. Não por uma proibição direta, mas por pressões sutis e constantes: desconforto dele, críticas às amigas, exigência de presença permanente, convites que nunca são “o momento certo”.

A mulher passa a circular apenas nos espaços que convêm a ele, acompanhando-o quando ele decide, enquanto sua vida social se reduz. Isso não é adaptação natural do relacionamento. Isso é isolamento. E o isolamento é um dos principais fatores de risco para a escalada da violência. Relações saudáveis preservam redes:
a rede de amigos dele,
a rede de amigas dela
e a rede construída em comum.
Quando apenas um lado mantém autonomia, vínculos e liberdade, não há parceria, há controle.

A violência também se manifesta no controle disfarçado de cuidado: o pedido para trocar de roupa, a crítica constante ao corpo, o “você está gorda”, “está comendo demais”. Manifesta-se na tentativa de isolamento simbólico, quando o homem desqualifica pessoas próximas chamando uma amiga de “periguete”. Não se trata de opinião ou zelo, trata-se de atacar a moral dessa amiga para enfraquecer o vínculo e afastar a mulher de sua rede de apoio.

Há ainda o monitoramento constante, frequentemente romantizado como preocupação: ligações excessivas, mensagens cobrando respostas imediatas, exigência de saber onde está, com quem está e por quanto tempo, não é cuidado, é vigilância.

Esse controle se estende também ao pensamento. Quando o homem determina o voto da companheira, “aqui nós votamos em fulano”, ele nega a mulher como sujeito político, como ser pensante, capaz de análise, escolha e decisão. Isso também é machismo. Isso também é violência.

Esses comportamentos não são sinais de amor. São alertas claros de uma relação baseada na hierarquia, na dominação e na tentativa de anulação da autonomia feminina. Quando relativizados, pelo álcool, pelo ciúme, pelo silêncio social, eles se aprofundam.

É fundamental que a sociedade compreenda, de uma vez por todas, que mulheres não enfrentam a violência sozinhas:amigos, familiares, vizinhos, colegas de trabalho e instituições formam uma rede de apoio essencial. A ideia de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” não é prudência: é omissão.

Hoje, meter a colher é ligar 180. É orientar. É denunciar. É acolher. É salvar vidas.

O feminicídio não começa no fim. Ele começa quando escolhemos não enxergar, e só termina quando decidimos agir.

Texto: Raka Costa 
Imagem: Internet 


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